Intercâmbio de Vida

E se alguém trocasse a tua vida de um dia para o outro?

Friday, May 04, 2007

-Mamãaaaaaaa...
O Duarte chorava uma vez mais naquela noite. Clara não podia mais, estava exausta. Não dormira mais do que duas horas seguidas, depois de um sábado extremamente activo no parque , de um serão particularmente difícil devido a uma birra da Leonor e de um Jeremias um tanto carente, tudo o que ela precisava era de uma boa noite de sono para repor energias. O Duarte decididamente não partilhava da mesma opinião.
- Oh João, vai lá tu que eu não aguento mais.
- Pareceu-me que o teu filho disse mamã e não papá. - Um certo tom jocoso denotava-a na sua voz enquanto se virava na cama enroscando-se nos lençóis.
- Ainda mas pagas um dia- resmungou Clara enquanto saía da cama a custo, estando o choro de Duarte ainda mais alto.
Chegou ao quarto e o filho estava vermelho, suado e quente, muito quente. Caiu no seu colo lamuriando-se baixinho. Estava a arder em febre. Clara deu-lhe um ben-u-ron e sentou-se com ele no cadeirão que se encontrava no quarto, dos tempos em que o amamentava. Duarte estava mais calmo, enroscado nos braços da mãe. Fechara os olhos e pela sua respiração, podia-se dizer que voltara a adormecer. A febre foi baixando com o tempo, a respiração estabilizou e o rubor nas suas faces passou. Clara permanecia ali, embalando suavemente o seu filho pequenino no colo. Recordava-o tão bebé ali, naquele mesmo sítio, as noites que passara ali com ele. Uns passinhos pequeninos e firmes interromperam os seus pensamentos. Leonor chegava ao quarto do irmão, em bicos de pés, o cabelo desalinhado e a sua boneca pendurada na mão direita. Com a mão esquerda esfregava os olhos e por entre os lábios despontava um sorriso malandro.
-Anda cá malandreca. Não devias estar a dormir?
A Leonor correu para o colo da mãe a rebentar de alegria. Clara acomodou Duarte de modo a ter colo para ambos os filhos, cabiam sempre ambos, como supunha que caberiam sempre os filhos no colo de uma mãe. Leonor não tardou a adormecer no aconchego do colo da mãe. E assim ficou Clara, sentada no cadeirão com os seus filhos adormecidos. Estava tão exausta que não demorou a adormecer, mesmo ali, sentindo a respiração dos pequenos no seu pescoço. Adormeceu tão profundamente que nem deu pelo ciumento Jeremias a entrar no quarto e a deitar-se a seus pés, com o focinho nas suas pernas.
De manhã, João levantou-se e estranhando a ausência da mulher entrou no quarto do filho. Sorriu, pegou na máquina fotográfica e imortalizou o momento. Era ainda bastante cedo, por isso saiu de casa, com a máquina debaixo do braço e dirigiu-se à loja. Quando regressou a casa a paz ainda reinava. Ao entrar no quarto do filho mais novo deu com eles a acordar, a rir bem dispostos uns com os outros, ainda com cara de sono. Clara parecia feliz e descansada apesar da má posição em que passara a noite.
- Leonor, Duarte, o beijo do pai?
Ambos correram para o pai enquanto este lhes segredou algo ao ouvido e lhes entregou um embrulho.
- Feliz dia da mãe!!- gritaram os pequenos ao ir dar um beijo à mãe.- Toma, é para ti!
Clara abriu o embrulho cuidadosamente, olhando de relance para João.
Lá dentro estava uma fotografia numa moldura. Ela dormia envolvendo o pequeno Duarte com um braço e a Leonor com o outro. Aos pés o Jeremias, deitado com o focinho entre as patas, não parecia incomodado com a boneca de Leonor a bater-lhe no nariz. Na cara de Clara adormecida, um sorriso nos lábios. De pura e genuina felicidade.

Thursday, March 22, 2007

O sorriso emanava-lhe do rosto como há muito não acontecia. Corria o hiper-mercado naquele que era o dia da semana que mais gostava. O carrinho que empurrava também contribuia largamente para isso. Adorava vir as compras no hiper-mercado, não só pelas compras em si mas porque aqui a sua solidão era normal. As mulheres vagueavam pelos corredores sem companhia olhando e escolhendo os melhores preços e produtos. Bianca imitava-lhes os gestos. E o sorriso voava-lhe da cara.
Havia também alguns artigos no seu carrinho que denunciavam a sua boa disposição. Um bolo aparentemente caseiro de chocolote aconchegado na sua caixa plástica, um sumo com uma embalagem colorida, e um xilofone. Isso era o que mais a alegrava. Em cada toque de relance que os olhos passavam lá sorria de felicidade. Era uma prenda a si mesma. Hoje não lhe importava que não tivesse presentes de mais ninguém à espera dela. O xilofone era exactamente tudo o que queria ter! E ao adornar o carrinho de compras com ele completava o disfarce que tinha uma familia inteira è sua espera em casa. Sorriu à menina da caixa quando esta passava o brinquedo pelo detector de preços. Mal conseguiu aguentar o caminho todo no autocarro sem desfazer o plástico que protegia as pequenas teclas metálicas.
Nem se preocupou em pôr os congelados no congelador mal chegou a casa. Sentou-se no sofá no silêncio absoluto, e abriu a caixa lentamente como quem saboreia um quadradinho de chocolate. Pousou-o a mesa do café mesmo à sua frente e susteve-se no ar com as baquetas feitas para mãos de crianças de 5 ou 6 anos. Deixou tocar aquele silêncio bem como um prelúdio para o que se seguia. Baixou então a pequena esfera verde suspensa no pauzinho vermelho no rectangulo metalizado. O mais grave e comprido. O som trouxe-lhe um vento cheio de aromas. O cheiro da infância, da harmonia, da alegria quase eufórica, da satisfação, e da realização. Baixou então a segunda vez e correu as teclas todas até chegar ao agudo mais pequeno. Sorriu longamente.
Só passado algumas horas é que se lembrou que tinha que comer, e só quando os olhos se fechavam, passado muitas horas, é que se lembrou que tinha que dormir. Não se lembrou que a meia-noite trazia o seu trigésimo terceiro aniversário.

Monday, November 27, 2006

Perder. Bastava esse pensamento para ela estremecer. Perder o João, perder a Leonor e o pequeno Duarte. Talvez de modos diferentes. Não imaginava a vida sem o seu marido ao seu lado. Tinha pesadelos em que ele lhe dizia que se ia embora porque já não a amava. Acordava com lágrimas nos olhos, suores frios e um profundo pesar. Reconfortava-se com os braços dele que a envolviam como que pressentido o seu mau estar. Sabia que não poderia viver sem ele. Tentava não pensar muito nestes medos mas por vezes era difícil. Há uns tempos atrás, era o Duarte um bebé recém-nascido, a Leonor esteve muito mal, esteve internada por uns meses, em risco de vida. Nesses meses ela deixou de ser uma pessoa e passou a ser um autómato. Nesses meses ela descobriu a pequenez da sua pessoa, o impotente que era. Aos poucos a Leonor melhorou, o Duarte cresceu e os medos atenuaram, mas estavam lá e quando se sentia mais fragilizada eles voltavam. Tinha muitos medos e sabia que isso era mau. Quisera ser como o João, seguro de si, com um sorriso nos lábios reconfortante. Ela tornava-se vulnerável. Sabia que sucumbiria à solidão, sabia-se dependente dos seus. Através da porta de vidro olhou para dentro de sua casa. Estavam no sofá. O João atirava o Duarte ao ar, a Leonor rodopiava com a sua roupa de princesa, o Jeremias dormia à lareira. A Leonor olhou para ela e veio a correr, colou a sua mãozinha no vidro. Sorria, transbordava de alegria. Clara, pelo lado de fora, colocou a sua mão junto da da filha, sorriram uma para a outra. Abriu a porta e entrou, levando a pequena ao colo. Sentou-se no sofá, encostou a cabeça ao ombro do João, que carinhosamente lhe deu um beijo na testa. E ali ficou, rodeada de paz e de alegria transformada em gargalhadas de crianças.

Sunday, November 26, 2006

A nova hora dita que a noite chegasse mais cedo. O frio deixa já a sua marca na janela fazendo as luzes da cidade estrelarem-se à passagem pelo vidro. Bianca larga o olhar sobre a rua que lá em baixo treme. Há ainda fumo de castanhas pelo ar apesar de o velho homem escurecido pelo fumo já estar a arrumar a sua loja ambulante. Imaginando o sabor das castanhas ela mastigava a maçã à demasiado tempo. Hoje, como em muitas outras tardes de sábado, fazia uso do seu galinheiro para exercer o voyeurismo que tanto criticava. Pousou agora os olhos no casal que brincava com as castanhas ainda quentes enquanto atiravam olhares pouco atentos as montras que os rodeavam. Pensou no Miguel. A sua imagem ainda lhe roía o espírito. A sua lembrança ainda lhe queimava a testa. Lembrava-se tão bem da última vez que o vira.
Era Janeiro, voltavam de uma exposição de que ela já nem sabia o que estava exposto. Mas sabia de cor o sorriso que ele emanava. Recordava-se ao pormenor o pedaço de passeio em que tinham parado porque ele queria dizer alguma coisa. Ela sorria na sua inocência, tão pobre e burra inocência. Lembrava-se das suas exactas palavras que repetia de olhos fechados quando o seu fantasma lhe ardia no peito. «Estou completamente apaixonado! E ela também.» À segunda frase o coração dela caiu no chão e desfez-se em mil pedaços. Nunca sentiu tão pouco autocontrolo. Os pedaços do coração revoltavam-se lá dentro e tentavam jorrar-lhe pelos olhos. A a segunda frase dele esperneava tentando sair pela boca em gritos desenfreados. Mas não, não disse nada e o próprio silêncio quase a denunciou. «Não fiques assim, eu sei que estou demasiado feliz, mas não te preocupes que desta vez vai correr tudo bem» O sorriso mais horrivel nasceu-lhe na cara naquele momento. E ainda hoje era aquele sorriso que via reflectido tenuamente na janela. Desceu o estore e deitou-se no sofá com o cobertor a cobri-la e a limpar-lhe as lágrimas.

Thursday, July 20, 2006

Enquanto trabalhava escrevendo umas cartas a computador revia cenas da sua vida. Cenas passadas, como o dia em que conhecera João, quando ele a ajudara a levantar depois de uma aparatosa queda à chuva, o dia em que a pediu em namoro e inúmeras cenas românticas entre ambos. O dia do seu casamento não tinha sido o dia feliz que sempre imaginara. Não foi solarengo nem colorido, nem se sentia leve como um passarinho com borboletas no estômago. Era nostálgica por natureza e o dia do seu casamento significava a derradeira separação dos seus pais e da casa que sempre fora sua. Amava o João sem dúvida mas tinha-lhe custado a separação. O seu pai atravessara a igreja com lágrimas nos olhos e ela não conseguiu manter um sorriso quando largou o seu pai para abraçar o seu noivo. Por momentos teve tanto medo que ponderou desatar a correr. Mas foi-se acalmando e, apesar de ao princípio passar a vida em casa dos pais, não tardou a cortar definitivamente o cordão umbilical. Teve de ir morar para longe deles por motivos de trabalho. Não tardaram a querer um filho e à primeira tentativa Clara engravidou. Lembra-se como se fosse hoje da notícia dessa gravidez, da descoberta que era uma menina a caminho, do dia do seu nascimento. Leonor era preciosa, a menina que sempre desejara ter. Quando a Leonor tinha quase um ano ofereceram-lhe o Jeremias, um cachorrinho labrador amarelo. A partir daí tornaram-se os melhores amigos. Pouco tempo depois engravidou novamente. O Duarte vinha a caminho. Felizes com a notícia de um novo bebé deliraram ao saber que era um menino, principalmente o pai. O nascimento do Duarte foi menos emotivo, já não era novidade, foi mais racional. A Leonor adorava o Duarte e o Jeremias assumiu a sua posição como guarda-costas do bebé sem a menor dificuldade. Passaram belos momentos juntos os cinco, sempre tinham sido muito felizes. Mas por vezes ficava tão cansada que só lhe apetecia tirar umas férias da maternidade, por vezes, lá bem no fundinho tinha saudades de quando era solteira e não tinha preocupações. Mas só mesmo lá no fundinho e nunca o dizia em voz alta. Não fosse Deus castigá-la!

Thursday, July 06, 2006

O sol estica-se tentando chegar ao zénite que marca a metade da sua trajectória. Na rua os carros ainda dormem encostados às arvores que povoam a avenida. Bianca acordouj cedo e face à infantilidade da televisão senta-se agora na marquise com um livro entalado entre as pernas. Ao contrário do que era costume era um livro de culinária. Enquanto salivava olhando as imagens olhava os ingredientes tentando encontrar alguma coisa que pudesse cozinhar com o que tinha em casa. Não gostava nada de folhear este livros, principalmente pelo que estava em frente ao nome da iguaria entre parentises. Nunca havia nada para 1 pessoa . Lá encontrou um arroz mais fora do comum e começou a seguir o guião. Enquanto a panela fervilhava escondida pelo testo, ela pôs a mesa com brio mesmo sendo só um prato que a povoava. Com as noticias hilariantes de domingo comeu sossegada e com vontade. No fim deixou tudo na mesa espalhando-se no sofá a ver um filme cor-de-rosa-algodão-doce. Exageradamente doce, pensou ela. Antes de adormecer. Só acordou com o som metálico da campainha. Os olhos correram logo para o relógio da aparelhagem mas este ainda piscava a meia noite porque ela ainda não se tinha dado ao trabalho de o acertar. Olhou então o sol já alaranjado e lembrou-se que Sara tinha ficado de passar lá para lhe mostrar as fotos do casamento. Correu a arrumar tudo na cozinha depois de lhe abrir a porta la em baixo. Quando a campainha voltou a soar já Bianca usava as suas mãos como pente em frente ao espelho da entrada.
-Olá- disse Sara quase gritando a sua felicidade como se a expressão na sua face não chegasse. Vinha sozinha contudo.
Ao menos isso desabafou o coração de Bianca.
Sentaram-se no sofá, Bianca exibindo o pináculo do seu sorriso amarelo, Sara agarrando o album grosso contra a cintura. Trocaram palavras vãs, sorriram formalidades e até que o livro se abriu mostrando toda a brancura de um dia que nada dizia a Bianca. Era nestes momentos que se sentia mais que tudo revoltada com um mundo que parecia atormentá-la só porque não tinha fotografias assim, porque não tinha um anel na sua mão, ou sequer uma mão. Já não se lembrava de lhe custar tanto a manter o sorriso, e ao fechar da porta caiu no chão sentada e a dor que escondeu atrás do sorriso durante toda aquela conversa saiu-lhe em torrentes de lágrimas. Quando finalmente acalmou levantou-se e no congelador tirou um balde de gelado para tentar arrefecer o coração que vibrava ainda vermelho de dor.

Monday, June 26, 2006

-Bom dia pequenina! Nanou bem, nanou meu amor?
- Xiiiim.
- Dá um beijinho à mamã e toca a levantar para ir para casa da vovó!
A Leonor abraçou-se à mãe, deu-lhe um longo e lambuzado beijo e levantou-se ainda ensonada, com passos incertos até ao quarto-de-banho. Ela apanhou umas roupas do chão e foi em direcção ao outro quarto. Estava na penumbra e sentia o cheirinho do seu filho por todo o quarto. Este em tons de azul muito clarinho e com legos espalhados por todo o chão. Olhou para o seu pequenino adormecido, todo destapado e atravessado na cama, com os caracóis despenteados e a boca entreaberta numa respiração firme e constante. Tinha tirado as calças de pijama e estava só de fralda. Ficou a olhar para o seu filhinho adormecido, fez-lhe uma festa nos caracóis e chamou por ele baixinho. O Duarte abriu os olhos ensonados e sorriu para a mãe.
- Xó mas bitiquinho.
- Não pode ser pequenino, tens de levantar para ir com a mana para a vovó.
- Mas Duate tem xoninho.
- Nanas mais no carro amor, agora toma o teu biberão e quando acabar chama a mamã.
Apesar de já estar a caminho dos dois anos o Duarte ainda dormia na cama de grades que tinha sido dela, e do pai dela e dos tios e primos. Ele gostava e ela também.
Saiu do quarto dele e foi vesti-la, sempre vaidosa com os seus vestidinhos. Como sempre quis ir ver o irmão e claro, arreliá-lo um bocadinho. O João veio e pegou no Duarte para o vestir. Era sempre assim, ela vestia a menina e ele o menino. Gostavam ambos disso. Quinze minutos depois todos sentados na mesa tomavam o pequeno almoço. O Jeremias estava pachorrento como sempre aos pés dos miúdos. Ela gostava da vida que tinha. Gostava dos filhos e do marido, do cão, da casa. Era sem dúvida uma pessoa feliz. Enquanto olhava para eles todos juntos ali à mesa não podia deixar de se sentir abençoada. A Leonor era linda e traquinas, era a cara do pai. Já o Duarte era mais parecido com ela.
- Clara!
- Diz, João, desculpa, não estava prestar atenção.
O marido passou-lhe a mão pelos cabelos e deu-lhe um beijo na testa.
- Deseja-me sorte para a reunião!
- Boa sorte querido. Deu-lhe um beijo e um abraço. Ele fez uma festa ao Duarte e recebeu um abraço apertadinho da Leonor.
Ela preparou-se para sair. Ia levar os miúdos a casa da mãe do João. Enquanto preparava as coisas parou na sala a olhar para as paredes. Quadros com desenhos da Leonor, azulejos com os pés dos dois. Por cima das prateleiras fotografias desde bebés, de um, dos dois, dos quatro. Com um sorriso, pegou no Duarte ao colo deu a mão à Leonor e foram juntos para o carro, rumo à casa da avó de que eles tanto gostavam.