Intercâmbio de Vida

E se alguém trocasse a tua vida de um dia para o outro?

Monday, November 27, 2006

Perder. Bastava esse pensamento para ela estremecer. Perder o João, perder a Leonor e o pequeno Duarte. Talvez de modos diferentes. Não imaginava a vida sem o seu marido ao seu lado. Tinha pesadelos em que ele lhe dizia que se ia embora porque já não a amava. Acordava com lágrimas nos olhos, suores frios e um profundo pesar. Reconfortava-se com os braços dele que a envolviam como que pressentido o seu mau estar. Sabia que não poderia viver sem ele. Tentava não pensar muito nestes medos mas por vezes era difícil. Há uns tempos atrás, era o Duarte um bebé recém-nascido, a Leonor esteve muito mal, esteve internada por uns meses, em risco de vida. Nesses meses ela deixou de ser uma pessoa e passou a ser um autómato. Nesses meses ela descobriu a pequenez da sua pessoa, o impotente que era. Aos poucos a Leonor melhorou, o Duarte cresceu e os medos atenuaram, mas estavam lá e quando se sentia mais fragilizada eles voltavam. Tinha muitos medos e sabia que isso era mau. Quisera ser como o João, seguro de si, com um sorriso nos lábios reconfortante. Ela tornava-se vulnerável. Sabia que sucumbiria à solidão, sabia-se dependente dos seus. Através da porta de vidro olhou para dentro de sua casa. Estavam no sofá. O João atirava o Duarte ao ar, a Leonor rodopiava com a sua roupa de princesa, o Jeremias dormia à lareira. A Leonor olhou para ela e veio a correr, colou a sua mãozinha no vidro. Sorria, transbordava de alegria. Clara, pelo lado de fora, colocou a sua mão junto da da filha, sorriram uma para a outra. Abriu a porta e entrou, levando a pequena ao colo. Sentou-se no sofá, encostou a cabeça ao ombro do João, que carinhosamente lhe deu um beijo na testa. E ali ficou, rodeada de paz e de alegria transformada em gargalhadas de crianças.

Sunday, November 26, 2006

A nova hora dita que a noite chegasse mais cedo. O frio deixa já a sua marca na janela fazendo as luzes da cidade estrelarem-se à passagem pelo vidro. Bianca larga o olhar sobre a rua que lá em baixo treme. Há ainda fumo de castanhas pelo ar apesar de o velho homem escurecido pelo fumo já estar a arrumar a sua loja ambulante. Imaginando o sabor das castanhas ela mastigava a maçã à demasiado tempo. Hoje, como em muitas outras tardes de sábado, fazia uso do seu galinheiro para exercer o voyeurismo que tanto criticava. Pousou agora os olhos no casal que brincava com as castanhas ainda quentes enquanto atiravam olhares pouco atentos as montras que os rodeavam. Pensou no Miguel. A sua imagem ainda lhe roía o espírito. A sua lembrança ainda lhe queimava a testa. Lembrava-se tão bem da última vez que o vira.
Era Janeiro, voltavam de uma exposição de que ela já nem sabia o que estava exposto. Mas sabia de cor o sorriso que ele emanava. Recordava-se ao pormenor o pedaço de passeio em que tinham parado porque ele queria dizer alguma coisa. Ela sorria na sua inocência, tão pobre e burra inocência. Lembrava-se das suas exactas palavras que repetia de olhos fechados quando o seu fantasma lhe ardia no peito. «Estou completamente apaixonado! E ela também.» À segunda frase o coração dela caiu no chão e desfez-se em mil pedaços. Nunca sentiu tão pouco autocontrolo. Os pedaços do coração revoltavam-se lá dentro e tentavam jorrar-lhe pelos olhos. A a segunda frase dele esperneava tentando sair pela boca em gritos desenfreados. Mas não, não disse nada e o próprio silêncio quase a denunciou. «Não fiques assim, eu sei que estou demasiado feliz, mas não te preocupes que desta vez vai correr tudo bem» O sorriso mais horrivel nasceu-lhe na cara naquele momento. E ainda hoje era aquele sorriso que via reflectido tenuamente na janela. Desceu o estore e deitou-se no sofá com o cobertor a cobri-la e a limpar-lhe as lágrimas.